Ativistas veem censura e não reparação em veto de ‘E o Vento Levou’

Um canal da HBO decidiu tirar o filme de seu catálogo e causou polêmica ─ Foto: Divulgação/Warner

“Este é um dos momentos mais felizes de minha vida, e quero agradecer cada um de vocês”, disse a atriz Hattie McDaniel quando subiu ao palco da 12ª edição do Oscar, em 1940, para receber o prêmio de melhor atriz coadjuvante. “Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria cinematográfica. Meu coração está pleno demais para lhes dizer como me sinto, e posso dizer ‘obrigada’. Que Deus os abençoe.”

Diferentemente de todos os outros premiados daquela noite, McDaniel era uma pessoa negra e se tornou, naquele momento, a primeira atriz de sua raça a receber uma estatueta da cerimônia.

O prêmio foi entregue devido ao seu trabalho no filme “E o Vento Levou”, de Victor Fleming, inspirado na trama do livro de mesmo nome, escrito por Margaret Mitchell, que narra uma história de romance, marcada por encontros e desencontros, vivida pela personagem Scarlett O’Hara, papel de Vivien Leigh, uma jovem branca filha de um latifundiário, no sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão.

No longa, McDaniel, filha de um casal ex-escravo, interpreta Mammy, uma empregada doméstica da família O’Hara, sarcástica, engraçada e amorosa com seus patrões. Além dela, os outros atores negros que compõem o elenco também interpretam criados.

Sempre doces, obedientes e ingênuos, os negros de “E o Vento Levou”, no entanto, são uma representação deturpada da realidade existente no sul dos Estados Unidos durante a época representada, o início da década de 1860, marcada por horrores da escravidão, responsável pela comercialização, estupro, tortura e assassinato de povos negros.

Militantes negros criticaram o filme quando lançado, em 1939, mas isso não impediu que a obra levasse oito prêmios no Oscar, incluindo o de melhor filme, e se tornasse um clássico. Agora, oito décadas depois do lançamento, “E o Vento Levou” está envolvido numa nova polêmica, e dessa vez, intensificada pelas redes sociais.

Em meio aos recentes protestos contra o racismo nos Estados Unidos –motivados pelo assassinato de George Floyd– John Ridley, roteirista de “12 Anos de Escravidão”, escreveu na segunda-feira um artigo no jornal Los Angeles Times dizendo que o filme de Fleming “perpetua alguns dos estereótipos mais dolorosos das pessoas de cor” e, por isso, deveria ser urgentemente retirado da plataforma de streaming recém-lançada HBO Max.

No dia seguinte, a empresa anunciou que retirou a obra e pretende devolver o longa ao catálogo, no futuro, acompanhado de um material de contextualização histórica que promova a discussão sobre as problemáticas em questão, como Ridley já havia sugerido.

Diversas obras artísticas ao longo da história já foram acusadas de promover algum tipo de opressão e geraram uma série de críticas. Entre textões no Facebook, trending topics no Twitter e vídeos no Instagram, as polêmicas ganham agora um ritmo cada vez mais frenético na era da internet.

A decisão da HBO Max, por exemplo, teve grande repercussão, que foi desde as acusações de censura até o destaque que “E o Vento Levou” conquistou ocupando o topo das vendas de best-sellers da Amazon.

O professor e cineasta Dodô Azevedo diz que a atitude da HBO não só é um tipo de censura à arte como também uma propaganda “de sua parte tóxica”.

“Esse filme é e será lembrado como a prova de que melhoramos como seres humanos. Isso faz parte da nossa história e não merece censura”, diz ele. “Muitos filmes foram usados para propaganda nazista e é muito importante analisar para que isso não se repita.”

A retirada temporária do filme da plataforma é também criticada por Thiago Amparo, especialista em direito. “A censura pode acontecer por razões moralmente aceitáveis ou não, mas o ato é o mesmo. E isso pode até ter um efeito contrário e incentivar um interesse pela obra desacompanhado de qualquer contextualização.”

O livro “Racismo Recreativo”, de Adilson Moreira, publicado no ano passado, sugere como alternativa que o consumo de produtos artísticos que contenham discursos e ideias opressoras sejam realizados sempre alinhados a um material capaz de expor as problemáticas em questão, ação prometida pela HBO, mas ainda sem data definida.

“O racismo continua presente na nossa sociedade devido à ausência de debate sobre ele”, diz Moreira. “Esse pode ser um ponto de partida para nós entendermos o momento presente e não reproduzirmos certas narrativas. Esse é um bom exemplo de letramento racial.”

No caso do Brasil, a filósofa Djamila Ribeiro considera que livros como o “Sítio do Picapau Amarelo”, de Monteiro Lobato, que segundo ela, não só disseminam discursos racistas, como também os estimulam, não devem constar numa grade educacional infantil. “Se adultos quiserem ter [o livro] nas suas estantes, tudo bem. Mas uma criança está em processo de formação.”

Quando questionada sobre a decisão da HBO, Ribeiro diz que não considera o caso como censura. “Isso é só uma plataforma retirando um filme que romantiza a violência racial. Censura seria se ele não fosse exibido nunca mais em nenhum lugar.”

Diante de tantas discussões e protestos contra o racismo, é preciso ter em mente a necessidade de promover mudanças significativas, e não sentir só uma “meia culpa”. É o que diz Amparo, que interpreta a decisão da HBO Max como uma “censura temporária”, ao analisar os acontecimentos atuais envolvendo a luta antirracista.

Ele diz ainda que a empresa deveria aproveitar a preocupação para investir em mais produções culturais negras.

FONTE: FOLHAPRESS