O processo de difamação entre Amber Heard e Johnny Depp, nos Estados Unidos, e a transmissão das sessões na televisão terá um impacto “potencialmente catastrófico” para as vítimas de violência doméstica, dizem organizações de defesa das mulheres. As seis semanas de processo no tribunal de Fairfax, perto de Washington, se transformaram em um grande desabafo sobre a vida privada do casal de estrelas de Hollywood que se acusavam de violência.
Na quarta-feira (1), os jurados decidiram a favor do ator e condenaram a atriz, de 36 anos, a pagar pouco mais de US$ 10 milhões em danos for ter difamado o seu ex-marido ao descrever “uma personalidade que representa a violência doméstica”, em uma coluna publicada em 2018, sem que o nome de Johnny Depp tenha sido mencionado.
Dawn Ruges, uma psicóloga que examinou atriz disse, em testemunho, que ela relatou ter sido abusada em diversas ocasiões. O ex-casal lutava na Justiça desde 2016, com acusações de ambos os lados. Ruges testemunhou que a atriz sofre com transtorno de estresse pós-traumático por conta dos abusos físicos e sexuais de Depp. A psicóloga afirmou que o ator tentou procurar cocaína dentro da vagina da atriz, durante uma briga em que ele pensou que ela havia escondido a droga. Em outra ocasião, ele a teria penetrado com uma garrafa.
Os advogados de Depp encerraram suas argumentações depois de dizerem que Heard caluniou o astro quando ela alegou ter sido vítima de violência doméstica. O divórcio do casal foi finalizado em 2017, após menos de dois anos de casamento.
O ator, que viveu entre outros personagens o pirata Jack Sparrow, no filme “Piratas do Caribe”, foi condenado a pagar US$ 2 milhões para Heard por danos morais. Cada passo do julgamento foi assistido por milhões de pessoas em todo o mundo. Muitas expressaram apoio a Depp nas redes sociais. A hashtag #justiceforjohnnydepp teve, por exemplo, aproximadamente 19 bilhões de visualizações.
O júri, no entanto, foi instruído a não ler sobre o caso na internet. Porém, os integrantes não estavam isolados e puderam manter seus celulares.
Apesar da oposição dos advogados de Amber Heard, a juíza Penney Azcarate decidiu permitir que as audiências do caso fossem transmitidas pela televisão. Para Michele Dauber, professora de direito da Universidade de Stanford e ativista contra agressão sexual no campus, foi “a pior decisão tomada por um tribunal em décadas para as vítimas”, o que mostra “um profundo mal-entendido sobre violência sexual por parte do juiz”.
Ela argumenta que Amber Heard teve de descrever seu suposto estupro em detalhes na televisão. “É chocante e deve ofender todas as mulheres e vítimas, concordando ou não com o veredicto”, disse Dauber.
A última vez que uma vítima de estupro foi forçada a testemunhar publicamente foi em 1983, disse ela. “Não há interesse público neste caso que possa superar o dano causado”, acrescentou Michelle Dauber, destacando que agora “toda vítima pensará duas vezes antes de se apresentar e pedir uma ordem de restrição ou contar a alguém sobre o abuso que sofreu”. Para a professora, “mulheres podem ser feridas, até mesmo mortas, por não pedirem ajuda. Este caso foi um desastre completo. É potencialmente catastrófico”, conclui.
Audiência mundial
O julgamento atraiu uma audiência global desacostumada a assistir a alegações de agressão sexual conjugal e isso — independentemente das opiniões sobre o veredicto — é um problema, segundo Ruth Glenn, presidente da Coalizão Nacional Contra a Violência Doméstica (NCADV). “Acho que nossa sociedade ainda não entende a dinâmica da violência doméstica”, disse ela à AFP. Para Ruth Glenn, o processo é um lembrete do trabalho que ainda precisa ser feito. “É um exemplo perfeito de um caso que influencia uma cultura”, explica ela.
Glenn acredita que o contexto não foi suficientemente discutido durante o processo judicial. Para ela, “não há dúvidas” sobre os tipos de abuso que foram revelados no julgamento. “Você tem que ter certeza de que as pessoas presentes entendam isso. Mas até lá, não mostre essas coisas na televisão”, insistiu.
As mensagens de insulto recebidas por Michele Dauber por comentar o julgamento no Twitter também ilustram, segundo ela, a crescente oposição aos direitos das mulheres nos Estados Unidos. O tema ganha destaque no contexto das ameaças ao direito ao aborto por parte da Suprema Corte americana.
A opinião pública apoiou Johnny Depp, enquanto a acusadora era alvo de insultos e zombarias “abertamente misóginas” nas redes sociais, acredita Dauber.
Repercussão sobre o #MeeToo
O caso também levanta a questão do futuro do movimento #MeToo, uma hashtag nascida em 2017 para incentivar as mulheres a denunciarem os autores de assédio e agressão sexual. “É impossível não ver isso como uma reação ao #MeToo, as mulheres foram longe demais”, escreve um usuário no Reddit.
Para Tarana Burke, fundadora do #MeToo, “esse movimento está completamente VIVO”, chamando a atenção para a coragem de milhões de mulheres que se manifestaram contra a violência e não em batalhas legais, vencidas ou perdidas, como destacou em sua conta no Twitter.