Naqueles dias dourados dos anos 70, a infância tinha um toque de liberdade que hoje parece memória de outra era. Era uma manhã qualquer na minha casa, e minha avó, sempre zelosa, cuidava de mim e de minha irmã. Na ingenuidade das crianças, entre risadas e travessuras, começamos a fazer mais bagunça do que o sossego permitia. Não demorou para que o olhar vigilante da minha avó se voltasse para nós, trazendo com ele a certeza de uma repreensão. Naquele tempo, algumas palmadas eram tão naturais quanto o ar livre — e sabíamos que eram eficazes.
Porém, antes que o castigo me alcançasse, meu instinto de fuga foi mais rápido. Em um movimento ágil, passei pela sala, pelo corredor e, num salto certeiro, cruzei o portão baixo da entrada, alcançando a calçada com a confiança de quem acredita que escapou. Sentia o vento no rosto e a adrenalina da liberdade recém-conquistada. Mas, como em qualquer boa história de infância, apareceu o guardião inesperado: um cachorro vira-latas, desses de pelo caramelo, com olhar atento e certo senso de autoridade.
O cão me fitou com uma expressão que parecia dizer: “Onde você pensa que vai?”. Antes que eu pudesse dar mais um passo, ele se lançou em minha direção, latindo como quem tem uma missão. Sem muitas opções, recuei, e o vira-lata foi me “acompanhando” até que, de volta ao portão, eu me rendi à segurança do lar.
Ofegante e com o coração ainda aos pulos, contei tudo para a minha avó, esperando talvez por um pouco de compaixão. Mas ela, com a sabedoria simples e firme dos mais velhos, só disse: “Bem feito!” E com essas duas palavras, entregou uma lição que levo até hoje: melhor o castigo de quem nos quer bem do que o susto dos caminhos incertos da vida.
Essa lembrança, de uma infância que tinha guardiões improváveis e lições nas pequenas aventuras, é um retrato fiel de um tempo em que as calçadas e as casas eram territórios seguros, e onde até os cachorros de rua faziam parte da grande rede de proteção da nossa ingenuidade.
*Fábio de Souza Pereira – Jornalista, Professor e Assessor Eleitoral.