Uso de imunizante cubano gera polêmica na Venezuela

Mesmo sem aval da OMS, crianças e adolescentes recebem doses da vacina Abdala para poder voltar às aulas (Foto: YURI CORTEZ / AFP)

A chegada à Venezuela de 900 mil doses da Abdala, um protótipo de vacina criado em Cuba para combater a Covid-19, vem gerando polêmica. Com uma média de 840 novos casos da doença por dia, o governo de Nicolás Maduro tenta combater a expansão da doença aplicando imunizantes produzidos em países aliados: China, Rússia e Cuba.

No entanto, associações médicas e pais e responsáveis por crianças e adolescentes alertam para o uso do que classificam ser um “ensaio de vacina”.

“Não estou de acordo que apliquem algo que nem sequer foi declarado oficialmente como vacina. Em breve levarei meu filho, que tem 8 anos, para ser vacinado, mas exijo que seja ou a [vacina] russa (Sputnik V) ou a chinesa (Sinopharm). Nada de Abdala”, explicou à reportagem do R7 uma venezuelana de 35 anos que preferiu não informar seu nome por medo a represálias.

Ela e centenas de pais temem que seus filhos se tornem “cobaias” ao receber o imunizante cubano Abdala, que ainda não teve a aprovação da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Há poucas semanas a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) pediu que o governo da ilha divulgue dados sobre a Abdala para comprovar se o medicamento é eficaz contra o novo coronavírus.

As aulas foram retomadas na Venezuela no início de outubro deste ano por determinação de Nicolás Maduro. Para isso, foi autorizada a vacinação de menores de idade em todo o país.

Após 19 meses distantes das salas de aula, os alunos tiveram que comprovar estar vacinados. No entanto, isso não evitou que em pelo menos 40 escolas, particulares e públicas, fossem registrados casos da doença –, o que provocou a interrupção das aulas nessas instituições de ensino.

Entre os medicamentos utilizados na imunização está a cubana Abdala.

“A Abdala chega à Venezuela para se unir ao esforço na busca de 70% de vacinados”, informou Maduro no início de outubro, sem especificar se o imunizante foi doado ou comprado. Na ocasião, ele aproveitou para agradecer ao presidente cubano Miguel Díaz-Canel.

A vice-presidente Delcy Rodríguez exaltou o protótipo da vacina cubana: “Com as provas que fizemos na Venezuela com a aplicação da vacina Abdala, devemos dizer que ela tem altíssima eficácia”. As primeiras doses do medicamento cubano chegaram à Venezuela em junho passado.

Embora assustados com a propagação da doença, que já causou mais de 5.000 mortes no país — de acordo com dados estatais —, a associação de pais, ONGs e membros da área da saúde são contra o uso da Abdala.

A ONG Médicos Unidos por Venezuela manifestou pelas redes sociais que “não é possível aceitar que seja colocada em crianças e adolescentes essa candidata a vacina. Ela não foi autorizada pela entidade correspondente”.

Já a Academia Venezuelana de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais lançou um alerta sobre “não utilizar as candidatos a vacina Abdala e Soberana 02 [também criada em Cuba] para imunizar a população venezuelana contra a Covid-19, em especial crianças entre 2 e 11 anos”.

A doutora Maria Eugenia Landaeta, chefe do serviço de infectologia do Hospital Universitário de Caracas, explica que a Abdala “é uma candidato a vacina porque não saíram os estudos da primeira e da segunda fase [de prova], como aconteceu com as demais vacinas. Por isso não podemos chamá-la de vacina. Colocá-la massivamente em pessoas e sem que tenha sido aprovada pelos organismos reguladores é um risco porque não se sabe realmente qual é a eficácia e quais são os efeitos colaterais que possa ter”.

Enquanto pais bradam que seus filhos “não farão parte de grupos experimentais”, o governo chavista informou que até o fim do ano devem chegar à Venezuela 16 milhões de doses do suposto medicamento cubano. Maduro também planeja produzir em larga escala essa que é chamada pelos críticos de “ensaio de vacina”.

O governo garante que até o momento cerca de 85% da população venezuelana já foi imunizada contra a Covid-19 com variados tipos de vacina — a maioria com a chinesa Verocell/Sinopham. O país chegou a receber cerca de 5 milhões de doses da russa Sputinik V, mas uma interrupção no envio fez com que centenas de imunizados ficassem sem tomar a segunda dose da vacina produzida pela Rússia.

ONGs e profissionais da área médica, no entanto, afirmam que o número de imunizados não passa de 35%.

Rafael Oriuela é professor pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade Central da Venezuela. Ele explica que “até o momento há uma situação bastante irregular quanto aos anúncios da vacinação, que demonstram não estar certos. Há poucos dias o governo disse que 70% da população foi vacinada com as duas doses. Sabemos que isso não é correto”.

Em junho deste ano foi dada a largada para a vacinação no país. Na ocasião, os idosos foram priorizados. Mas houve muita confusão e aglomerações em frente aos centros de vacinação, o que transformou esses locais em focos de contágio da Covid-19.

A aposentada Rita Suárez preferiu interromper a imunização contra o coronavírus. “Tomei a primeira dose e me senti tão mal que preferi não tomar a segunda. Prefiro ficar assim mesmo.”

Para acelerar o processo de imunização total da população, desde 8 de novembro, poucas semanas antes das eleições, graças a um acordo feito pelo Ministério da Saúde da Venezuela e pela Câmara Venezuelana de Farmácia, duas grandes redes de farmácias, com estabelecimentos em alguns estados do país, começaram a aplicar as vacinas anti-Covid. O governo de Maduro estima que até dezembro deste ano 95% da população esteja vacinada.

Em outubro, a quarentena foi flexibilizada em todo o país. Críticos ao governo de Maduro alegam que essa decisão foi tomada para ajudar a mobilizar a crítica economia venezuelana, cuja inflação acumulada de 2021 gira em torno de 1.572%, de acordo com a Agência Reuters.

Outro motivo para o fim temporário da quarentena seria estimular a população a sair para eleger, no próximo domingo, os 23 governadores e 335 prefeitos que tomarão posse em janeiro de 2022.

Nos últimos dias, a média diária de novos casos de Covid-19 na Venezuela gira em torno de 840. Mas durante a segunda onda, registrada no país entre agosto e setembro deste ano, o governo anunciava cerca de 1.400 novos pacientes por dia.

ONGs afirmam que o real número de pacientes com Covid não condiz com os números informados pelo governo.

Antes do período eleitoral, foi estabelecido pelo governo que uma semana seria de quarentena radical (embora poucos obedecessem a esse prazo) e outra, flexível.

“Não entendo o motivo desse tipo de restrição. Parece que em uma semana há vírus circulando e na outra não. Prefiro agora que a quarentena foi suspensa, assim posso voltar à vida normal”, declarou Stéphany Rodríguez, uma jovem de 21 anos enquanto se dispunha a entrar no abarrotado metrô da capital Caracas.

Já a administradora Isabel Pérez, de 62 anos, descobriu em julho deste ano que ela, a mãe, de 95 anos, e a irmã estavam com Covid-19. Usando o plano de saúde da empresa onde trabalha, ela chegou a ficar internada em uma clínica particular.

“Após um dia lá, disseram que a caução de US$ 10 mil do seguro médico já havia acabado e que eu deveria desocupar o leito.” Sem alternativa, ela acabou indo para o Poliedro de Caracas, uma espécie de Maracanãzinho transformado provisoriamente pelo governo de Maduro para tratar pacientes de coronavírus.

“Lá dentro, todos os médicos eram cubanos”, contou a administradora. Isabel ficou um total de 19 dias internada. Ela e a irmã conseguiram se salvar, já a mãe não teve a mesma sorte e acabou falecendo.

Seguidora fiel de Nicolás Maduro, Isabel tomou as duas doses do imunizante chinês Verocell. Mesmo desconhecendo que a vacina Abdala não foi aprovada pela OMS, ela alega que as pessoas contrárias ao imunizante cubano “são ignorantes e porque também há uma guerra contra o governo”.