TELONA: ‘Oppenheimer’ é retrato intenso e devastador do começo da Era Atômica

“Agora, eu me tornei a Morte. O destruidor de mundos.” O físico J. Robert Oppenheimer alimentou sua celebridade ao citar este verso do texto sagrado hindu Bhagavad-Gita após ver pela primeira vez o resultado do seu trabalho. Pouco depois de a primeira bomba atômica ser detonada no deserto do Novo México, efetivamente dando início à Era Atômica.

Curiosamente, não foi este o momento que o diretor Christopher Nolan escolheu para trazer a citação em “Oppenheimer”, biografia do homem que liderou a criação das bombas que atingiram o Japão pouco menos de um mês depois do teste no Novo México. A frase surge nos lábios de Cillian Murphy, à frente do elenco deste drama espetacular, muito antes de seu envolvimento nos eventos que lapidariam o mundo moderno.

É uma cena premonitória, em que Oppenheimer passa a noite com a estudante Jean Tatlock (Florence Pugh), enquanto ainda era professor em Berkeley, na California. Um momento de intimidade e inquietude, marcando o começo de uma reação em cadeia que vai definir o futuro – profissional, pessoal, político e moral – daquele que viria a ser arauto de uma das ações mais devastadoras e dolorosamente inevitáveis da história.

Entre os caminhos que levaram ao desenvolvimento da bomba, a destruição de Hiroshima e Nagazaki e as consequências do fim da Segunda Guerra Mundial no cenário mundial, a opção de Nolan em se concentrar no homem, e não nos eventos, faz de seu filme ainda mais urgente e poderoso. “Oppenheimer” traz todo o espetáculo que se espera de uma produção dessa escala, mas a pirotecnia existe somente como moldura para as conexões emocionais, em cena e conosco, que contam essa história.

Usando como ponto de partida a biografia “Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano”, lançada por Kai Bird e Martin J. Sherwin em 2005 depois de um quarto de século de pesquisa, Christopher Nolan fragmentou seu roteiro em três momentos da vida do físico, intercalados ao longo de pouco mais de 3 horas de filme.

Um deles, claro, é a criação do Projeto Manhattan, operação militar dirigida por Oppenheimer para vencer os nazistas na corrida pelo desenvolvimento da bomba atômica. O segundo aborda a longa audiência que, em 1954, buscou rotular o físico como comunista com supostos laços com a União Soviética, um reflexo do crescimento do Macarthismo e da Guerra Fria que dividiu o mundo em dois polos após a Segunda Guerra.

O terceiro fio condutor tira o protagonismo de Oppenheimer e adota o ponto de vista do almirante Lewis Strauss (Robert Downey Jr.), empresário e figura essencial para o desenvolvimento das políticas acerca do uso da energia e do poder bélico nuclear pelo governo americano. Em sua sabatina com os senadores do congresso para assumir uma vaga no governo Henry Truman, a natureza de sua relação com Oppenheimer é exposta.

É admirável a forma como Nolan condensa o livro de Bird e Sherwin em uma trama que, apesar de não mergulhar no volume de detalhes da biografia, exige a atenção do público dada a quantidade de informação. Seu segundo acerto foi rodar um drama biográfico com tom de thriller, equilibrando as sequências construídas em diálogos com cenas de tensão crescente, mesmo que o foco não sejam bombas e explosões, perigos da radiação ou cenas de destruição.

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Christopher Nolan orienta Cillian Murphy nas filmagens de ‘Oppenheimer’ — Imagem: Universal

O trabalho de direção em “Oppenheimer” nunca é menos que espantoso. Em entrevistas, Christopher Nolan pode soar pedante com seu didatismo exagerado em defesa da experiência cinematográfica. Como cineasta, contudo, ele domina a narrativa visual como poucos, encontrando aqui a mesma disposição que demostra nos aspectos técnicos de seu trabalho para mergulhar nos conflitos de seus personagens, em especial seu protagonista.

Oppenheimer é retratado como um gênio imperfeito. Ele encontra respaldo em sua inteligência superlativa para exercitar seu ego, compensando as fissuras em sua vida pessoal. O desafio de bater os nazistas, aliado a uma flexibilidade moral que o momento histórico tornou indispensável, resultam em uma vida assolada pela culpa da vasta destruição atômica. O peso é dele, mas o filme compartilha essa sensação incômoda e perturbadora com o público.

Cillian Murphy, colaborador de Nolan em “A Origem”, “Dunkirk” e na trilogia “O Cavaleiro das Trevas”, toma aqui o centro do palco como Oppenheimer. É um papel complexo em que seu magnetismo é associado ao distanciamento, fazendo com que seu retrato do físico seja crível como alguém capaz de gerenciar a criação de tamanho poder, da mesma forma em que não esconde sua humanidade em momentos de fragilidade.

Murphy, assombroso em sua caracterização como Oppenheimer, trabalha com o olhar, uma janela para a máquina fervilhando incessantemente em seu cérebro. O vislumbre de sua vida pessoal, em especial sua relação com Jean Tatlok e depois com sua esposa, Kitty (Emily Blunt), desenha o abismo de um gênio ante o resto da humanidade, a sua própria consumida no buraco negro de seu trabalho.

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Oppenheimer (Cillian Murphy) encara a luz incandescente de sua criação explosiva — Imagem: Universal

Se Cillian Murphy apresenta aqui o papel definitivo de sua carreira, seus companheiros no elenco de “Oppenheimer”, de Matt Damon a Josh Hartnett a Benny Safdie, o acompanham com seu melhor. É um prazer ver que Robert Downey Jr., depois de uma década ancorado nos filmes da Marvrel, não perdeu um átomo de sua fibra. Ainda que Emily Blunt domine o filme por completo em seus últimos vinte minutos, é Florence Pugh, no que pode ser a cena mais corajosa de sua carreira (não, não vou entregar), quem pode sair daqui direto para uma indicação ao Oscar.

A certo momento, “Oppenheimer” ameaça encontrar seu auge no teste da bomba atômica conduzido no Novo México. A execução da explosão é um triunfo técnico por parte de Nolan, que conduz a cena com elegância destruidora. A força do impacto, que evoca a mistura de exaltação e puro pavor sentida por Oppenheimer, é construída com o ritmo da edição, o desenho de som e a trilha espetacular de Ludwig Göransson – o ápice de uma estrutura dramática que nos mantém no limite da poltrona.

Mas a explosão desse primeiro artefato atômico, batizado Trinity, é apenas parte da jornada. Nolan entende que é preciso revelar mais camadas para que “Oppenheimer” cumpra seu papel não só como espetáculo cinematográfico, mas também como um alerta, uma obra complexa e perturbadora que possa jogar luz necessária em eventos que não podem ser perdidos por entre as frestas da história.

Não há melhor exemplo do que os breves e assustadoramente premonitórios encontros de Oppenheimer com Albert Einstein, em que eles discutem o poder então liberado. Lições que devem ser sublinhadas especialmente hoje, quando a voz científica encontra uma sociedade cética e o conflito da Ukrânia e a Rússia recupera a discussão nuclear no mundo. A memória coletiva é curta, é necessário cada geração lembrar, nem que seja por meio de um filme, que a detonação de duas únicas bombas atômicas deixou uma cicatriz na história.

A Morte. O Destruidor de mundos. Palavras de J. Robert Oppenheimer ao abraçar a responsabilidade de quem ousou liberar o fogo destruidor dos deuses. “Suponho que todos nós todos pensávamos assim”, disse, então, resignado. “De uma forma ou de outra.” Uma lição que “Oppenheimer”, com o poder narrativo do cinema, não nos deixa esquecer.