Sucesso em ‘Mar do Sertão’, Juzé e Lukete dizem: ‘Não somos repentistas’

Poetas divertem o público levando referências da cultura nordestina para o final de cada capítulo da novela das seis da TV Globo.

RIO – No ar desde agosto na TV Globo, a novela “Mar do Sertão”, ambientada no interior do Nordeste, tem surpreendido pelo desempenho e audiência. É possível dizer que parte do sucesso da trama das 18h se deve a dois poetas que cantam as cenas dos próximos capítulos, fazendo referência a arte da literatura de cordel. Os artistas paraibanos Juzé e Lukete dão vida à dupla Totonho e Palmito, que têm a importante missão de conquistar o público e convidá-los a voltar ao folhetim no dia seguinte, mas essa amizade não é só coisa de novela.

“Acho que a parceria começou porque a vida foi muito boa com a gente e cruzou nossos caminhos na nossa cidade. Muitas congruências, muitas coisas que se conversam, e aí bateu a afinidade. Pela vida, pela localidade, pelas referências culturais e pessoais”, conta Juzé. “A gente era colega, se conhecia, mas na pandemia nos tornamos amigos. Em meio a tantas incertezas da vida, o mundo se acabando, e a gente estava com esperança, visando o futuro, e pensando ‘quando tudo isso passar, o que a gente vai fazer?’”, relembra Lukete, sem imaginar que o destino levaria os dois para trabalhar em sua primeira novela.

Em meio a muitas coincidências, Lukete foi convidado para estar no workshop da trama antes de as gravações começarem. Isso culminou em um segundo convite, dessa vez para um personagem do folhetim, que seria um tipógrafo da Gazeta de Canta Pedra, a cidade fictícia onde se passa a história. Juzé também também estava ligado a “Mar do Sertão” pela música de abertura, “Deus me proteja”, cantada por Juliette, da qual ele participou da produção.

Ao encontrarem casualmente com Allan Fiterman, diretor artístico da novela, ele comentou que precisava de algo para preencher o tempo dos capítulos. “Ele tinha contratado 35 minutos de televisão e os capítulos estavam entre 28 a 31 minutos”, explica Lukete. “E aí a ideia veio dele mesmo, de ter alguém cantando as cenas dos próximos capítulos. E eu sugeri para gente fazer os textos porque gostamos dessa referência de cordel”, diz Juzé. “E foi então que ele perguntou: ‘e se fosse vocês reproduzirem isso?’”, relembra Lukete.

A partir daí eles precisaram criar o texto e mostrá-lo para a direção da novela. Por estarem em cidades diferentes na época, isso precisou ser feito por áudio no WhatsApp. Com tudo aprovado, veio o segundo teste, que era a gravação em cena. “Pela primeira vez na vida a gente estava num set com todo aquele aparato, toda uma cidade cenográfica, uma coisa grandiosa daquele jeito. Eu já tinha gravado clipe, mas não se comparava ao tamanho”, explica Juzé. “E aí já começaram a vir as referências, as memórias da infância. Então, eu olhei para Lukete e sabia que ele estava pensando o mesmo. A gente estava no Rio de Janeiro, numa cidade cenográfica, na Globo, matando a saudade do interior da Paraíba”, reflete.

“E estávamos no meio de uma correria, a galera trabalhando ainda mais, com uma semana para a estreia, fazendo um produto que não estava fechado, não tinha certeza se ia rolar, não tinha formato, era novo, nunca tinha sido feito. Era uma aposta de alto risco”, ressalta Lukete.

Mas eles foram aprovados no segundo teste também e, a partir daí, a cena foi tomando forma. “Foi quando solicitaram que a gente quebrasse a quarta parede. E foi isso que entregou para gente toda essa conexão com o Brasil, com o povo”, afirma Juzé. “De fato entrar na casa dos outros, sem pedir licença”, brinca Lukete.

Os repentistas

Apesar de serem conhecidos como repentistas, eles explicam que até se inspiram muito nessa arte mas não podem se nomear dessa forma. “Eu comecei a fazer poesia nessa formatação. A formatação do cordel, dos decassílabos, das sextilhas, dos repentes. Mas é importante frisar que a gente não é repentista. A gente tem o conhecimento desse universo, a gente idolatra essa galera que faz isso porque eles são seres divinos da poética, da arte, da forma que constroem com toda aquela métrica organizada, e o sentido do verso, respeitando todas as regras… Então, eles são gênios. A gente se intitula poetas, mas não repentistas”, explica Juzé.

“Repentistas são, acima de tudo, grandes estudiosos. Porque não é simplesmente rimar e passar uma mensagem. Dentro da estrutura de rima e verso tem uma matemática que eles reproduzem na hora, no improviso. Repentistas são um absurdo da natureza. E nós não somos porque não fazemos no improviso seguindo essa métrica” completa Lukete.

Mas, embora não se considerem repentistas, os artistas ficam felizes por conseguirem levar um pouco dessa cultura nordestina cheia de misturas para dentro da televisão brasileira.

“O batismo vem do popular. Alguém disse ‘os dois repentistas’, e esse título se repetiu. E como ele é muito repetido, é o que funciona mais para a informação. E o que eu acho legal é que eu sou um violeiro e ele é um pandeirista, então representa duas culturas dessa estética de arte, que são os emboladores e os repentistas. E nós dois somos filhos dessas referências, que nos apresentaram e despertaram interesse na gente. E a gente sempre está tentando levar isso que deságua em nós para dentro da estrutura das esquetes. E como o Nordeste é esse continente, essa região gigante, a gente leva outras coisas, como a musicalidade que Luís Gonzaga deixou para gente, Jakson do Pandeiro, o Baião, e também outras coisas mais contemporâneas, como o forró romântico de Calcinha Preta e Aviões do Forró. Então, é tudo bem plural, bem eclético”, analisa Juzé.

Lukete aproveita para ressaltar a importância de dar visibilidade à arte porque é isso que gera o interesse e cria novas oportunidades. “Eu acredito que alguém deve ter perguntado ‘o que é repentista?’. A gente tem consciência disso, e torce para que isso de fato gere curiosidade. Eu consegui reparar, por exemplo, uma mudança, um interesse maior pela poesia na aparição de Braúlio Bessa. A gente percebe que contagia quando recebe um holofote. Por que contagia? Porque é bom. A cultura ainda é viva porque é muito boa. E vai que a gente escuta no futuro alguém que diga ‘eu virei repentista por causa de uns personagens que apareciam na novela’? Tomara, Deus”, torce o artista.

“A poesia salvou a vida da gente. Isso é um fato. A gente se alimenta de arte. E ela está sempre em primeiro lugar, é algo que a gente tem que respeitar. A nossa essência vem muito do humor e da poesia. Isso faz a gente existir e faz bem às pessoas. E eu não sei quem fica mais feliz: se é a gente ou se é a galera que recebe a nossa arte”, conclui Juzé. ✅ O DIA