Cinco bilhões de reais por duas semanas de trabalho. Maior que qualquer prêmio lotérico, a bolada é parte de um acordo obscuro desenhado dentro do gabinete do então governador David Almeida (PSB) e entregue como “herança” a uma empresa mineira. Do montante, um advogado ligado a David foi autorizado a sacar R$ 200 milhões como “taxa de sucesso” pelo negócio. O acerto tem a Suhab como pano de fundo. O advogado foi o número 2 da pasta na gestão de David.
A história parece surreal mas está documentada. De tão grave, o “acordão do bilhão” é investigado pelo Ministério Público Estadual (MPE/AM). Uma parte do caso, porém, já está na Justiça. O plano de rombo nos cofres públicos do Estado teve início em junho de 2017, um mês após a posse de David Almeida como substituto do governador cassado José Melo.
A jogada tem a seguinte sequência. No dia 12 de junho de 2017, David Almeida nomeou o advogado José Júlio César Corrêa como diretor habitacional da Suhab. Dez dias depois, coincidentemente, o governador recebeu em seu gabinete uma proposta da empresa Ezo Soluções Interativas para recuperar valores do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), que é gerido pela Caixa Econômica Federal. Seria uma espécie de assessoria para “ajudar” o Estado a reaver verbas do fundo, destinadas à habitação.
No dia 15 de setembro o governo interino aceitou a proposta da empresa e decidiu fechar um contrato (de quatro páginas) com a Ezo, sem licitação e fora de qualquer parâmetro de negociação com o poder público. Duas semanas depois, em 2 de outubro, a empresa informou ao governo que havia concluído os trabalhos. E disse ter encontrado no FCVS, por cálculos próprios, R$ 27 bilhões em favor do Amazonas. Com isso, teria direito a receber do Estado 20% do valor que afirmou ter descoberto, isto é, inacreditáveis R$ 5 bilhões.
Para completar o “acordão do bilhão”, antes de apagar a luz, a gestão David Almeida oficializou no Diário Oficial do Estado o “serviço” da Ezo Soluções, registrando os 20% pela consultoria. Era a senha para o pagamento bilionário. A publicação foi feita em 4 de outubro, instantes antes da posse do governador eleito Amazonino Mendes – que, vale lembrar, só conseguiu assumir por causa de uma liminar. A Mesa Diretora da Assembleia Legislativa do Estado (ALE/AM), aliada de David, tentou a todo custo postergar a transmissão do cargo.
Mas não é só. Uma procuração escondida no 2º Serviço Notarial de Betim, em Minas Gerais, assinada pelo proprietário da Ezo Soluções Interativas, dá ao advogado José Júlio César Corrêa, aquele que foi número 2 da Suhab, nomeado por David Almeida, o direito de movimentar R$ 200 milhões como “honorário” pelo sucesso no acordo de R$ 5 bilhões com a própria Suhab.
A Superintendência de Habitação do Amazonas garante: o Estado nunca recebeu qualquer quantia como fruto do trabalho que a Ezo diz ter realizado, nem em forma de créditos junto ao Tesouro Nacional. A empresa registrou em cartório os valores que sustenta ter recuperado para o Amazonas, bem como o montante de R$ 5 bilhões que afiança ter direto a receber do governo. A Ezo trava uma batalha jurídica para dar cabo ao negócio que só foi interrompido com a chegada da nova gestão.
Justiça suspende contrato
A pedido da nova gestão da Suhab, o juiz Ronnie Frank Torres Stone, da 1ª. Vara da Fazenda Pública Estadual e de Crimes contra a Ordem Tributária determinou a suspensão do contrato com a Ezo Soluções Interativas. Conforme o magistrado, o contrato tem “inúmeras inconsistências”. O juiz afirma ser “realmente questionável” a transparência do processo administrativo”.
Ronnie Frank Torres Stone diz, além disso, que conforme documentação oficial da Suhab, a licitação, a dispensa e inexigibilidade para a contratação sequer foram formalizadas. A Ezo recorreu da decisão e tenta restabelecer os termos do contrato para ter direito a ativos de R$ 5 bilhões – que corresponde a um terço do orçamento do Estado – mas não conseguiu.
No processo, a empresa garante que o objeto do contrato com a Suhab – “identificação e recuperação de valores pertencentes à Superintendência” foi “devidamente executado”. Não houve, porém, a recuperação de qualquer quantia.
O contrato virou alvo de investigação no Ministério Público do Estado (MPE/AM), que apura “eventuais atos de improbidade administrativa” praticados pelo então superintendente da Suhab, Nílson Cardoso, o advogado José Júlio César Corrêa, o ex-diretor administrativo da Suhab Leandro Carlos Spener Xavier, e Cesar Augusto Marques da Silva, ex–chefe de gabinete de Nilson Cardoso. A 77ª Promotoria de Justiça Especializada de Proteção ao Patrimônio Público é quem cuida do caso.
‘Contrato sem minha participação’
Juntos, no ano passado, David Almeida e o então superintendente da Suhab, Nílson Cardoso, foram obrigados pelo TRE/AM a suspender demissões em massa de comissionados da pasta. A ordem foi dada pelo desembargador João Simões, a pedido do Ministério Público, que viu “uso da máquina” com motivo eleitoral. O advogado de ambos na ação é José Júlio César Corrêa.
Além da amizade com Nílson Cardoso (ambos foram secretários da gestão Serafim Corrêa, na Prefeitura de Manaus), o advogado José Júlio César Corrêa tem relações estreitas com o PSB, partido de David, e atua em processos do deputado estadual Platiny Soares, também do PSB e que integra o staff de aliados do presidente da Assembleia. Na Suhab, ele atuou por um mês ao lado de Nílson Cardoso. A procuração que dá ao advogado o direito a R$ 200 milhões pela negociação que envolve a Suhab foi registrada no Livro 0394-P, Folha 005, Protocolo 122511, no Segundo Serviço Notarial de Betim (MG), e é datada de 6 de janeiro de 2018.
Conforme o documento, que tem como outorgante o sócio-administrador da Ezo Soluções Interativas, Paulo Henrique Júlio Ciccarini, o valor corresponde “a parte dos honorários que foram lavrados em favor da outorgante em razão do contrato nº 016.0006619/2017”. O número do contrato é o mesmo que aparece na edição do último Diário Oficial da gestão David Almeida.
O presidente da ALE/AM, David Almeida, pré-candidato ao governo do Estado, negou que tenha participado de qualquer negociação com a Ezo Soluções Interativas e disse que o contrato com a empresa é de inteira responsabilidade dos gestores da Suhab. “Não tem recurso envolvido. São títulos negociáveis com instituições. A Suhab tem autonomia e procuradoria própria. O contrato foi feito sem a minha participação”, disse ele. A respeito de sua relação com José Júlio César Corrêa, David Almeida sustentou que não tem ligação com o advogado.
‘Contrato não passou pelo governo’
O ex-superintendente da Suhab, Nílson Cardoso, afirmou que “o contrato não passou pelo governo” e foi feito “diretamente com a autarquia”. “Quando endereçou para o gabinete do governador, a empresa errou. Tinha que ser enviado direto para a Suhab”, afirmou. Ao contrário do que disse David Almeida, Nílson Cardoso afirmou que há sim recursos em jogo. “Se o governo federal pagar (os recursos do fundo ao Estado), ela (Ezo Soluções) tem direito. Mas o governo federal não foi acionado”.
O advogado José Júlio César Corrêa admitiu que permaneceu “34 dias na Suhab” e que “meses depois” foi contratado pela Ezo Soluções Interativas. “Uma coisa não tem nexo com a outra”, afirmou. “Pelo trabalho que fui contratado para assessorar a empresa, recebi um salário. O que eu recebi de honorários não tem nada a ver com a Suhab. Como a empresa me pagou e quanto me pagou é um problema pessoal e fiscal meu”, afirmou o advogado.
Já Paulo Ciccarini, dono da Ezo Soluções Interativas, disse: “Esse crédito não é dinheiro nem para o Estado e nem para a minha empresa. Isso é um direito creditório. Direito futuro que pode levar um mês, um ano ou 100 anos para converter. Precisa que o governo federal dê o ‘aceite’ e fale: ‘aceito pagar comissão’”. Ele assegura que o processo foi legal.
Fonte: A Crítica