A disputa de terras entre Ceará e Piauí deixou os moradores da divisa entre os dois estados com muitas dúvidas. Luís Antônio reside em Pindoguaba, distrito na zona rural da cidade de Tianguá (CE), região com seis mil habitantes que podem ”se tornar” piauienses caso o Supremo Tribunal de Justiça (STF) aceite a reivindicação do estado do Piauí por terras que atualmente são cearenses. Ele tem um comércio no local desde os anos 1970 e não sabe de que município será residente caso a solicitação do Piauí seja atendida.
“A cidade do Piauí mais perto daqui é São João da Fronteira. Essa cidade tem cinco mil habitantes. A região de Pindoguaba tem seis mil. Pindoguaba vai acabar a vai fazer parte de uma cidade menor? Vai ter uma emancipação política e vai ser uma cidade independente? Vou ser morador de que cidade?”, questionou.
O estado do Piauí solicitou ao STF o reconhecimento de 2,8 mil km² do território cearense como sendo piauiense. O litígio afeta diretamente 13 cidades da Serra de Ibiapaba, no Ceará, e 25 mil cearenses. Os municípios seriam divididos ao meio: parte de suas terras seguiriam sendo cearenses e o território mais a oeste passaria a integrar o estado do Piauí. Um estudo preliminar do Exército aponta que as terras que devem ser definidas como piauienses abrangem um território ainda maior, atingido 245 mil cearenses.
O procurador do Piauí Luiz Filipe Ribeiro, que defende na Justiça que as terras sejam reconhecidas como piauienses, afirma que o pedido no STF não define como ficaria a divisão de terras caso a solicitação seja atendida.
“A ação pede duas coisas: que a área de litígio seja reconhecida como do Piauí e que seja feita uma demarcação de terra. Se a ação for julgada procedente, vamos ter um estudo, em um segundo momento, para avaliar como fica o limite entre os municípios”, explica.
A possibilidade de mudança também traz incertezas à vendedora Francilene Araújo. Ela compra frutas e verduras no Centro de Abastecimento de Tianguá e revende em outras duas cidades da região, Ubajara e Ibiapina.
“Se Ibiapina e Ubajara forem para o Piauí, vou continuar vendendo por lá sem pagar imposto? Vai ser do mesmo jeito? A gente não sabe, mas pode piorar; se for pra piorar, melhor deixar do jeito que está”, disse.
Vida dividida entre dois estados
O agricultor Benedito Antônio de Araújo reside em Pindoguaba, distrito da cidade de Tianguá, no interior do Ceará. Se a ministra do STF Cármen Lúcia aceitar o pedido do Piauí, que solicita na Justiça parte do território cearense, a comunidade será desmembrada, e o produtor rural ficará dividido entre dois estados: vai residir no Ceará e plantar em sua fazenda no Piauí.
“Se a decisão [favorável ao Piauí] acontecer, vai ser um prejuízo incalculável. E não falo só do impacto econômico: é da nossa raiz, da nossa origem; a gente é daqui. O STF, que é quem toma a decisão, precisa ouvir a população, precisa saber que aqui é nossa área, aqui está a nossa luta e tudo o que a gente conquistou”, diz Benedito.
“Não há motivo para pânico, medo ou qualquer temor da população envolvida”, diz o procurador do Piauí. “A gente não quer mudar RG ou a identidade cultural das pessoas. As pessoas nascidas nessas terras vão continuar cearenses. As que nascerem futuramente, caso a ação seja julgada procedente, é que serão naturais do Piauí.”
Origem do litígio
A jurisdição das terras na divisa entre Ceará e Piauí é secular, com argumentos conflitantes entre políticos, historiadores e pesquisadores dos dois estados. Em dissertação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), o geógrafo Eric de Melo diz que o Ceará avançou sobre terras piauienses e criou a freguesia de Amarração (atual município de Luís Correia, no Piauí) em terras que não são suas.
Um dos argumentos da Procuradoria-Geral do Estado do Piauí é que o Ceará invade a divisão geográfica definida pela Serra da Ibiapaba: a partir do cume, o que estiver a oeste é do Piauí; e a leste, do Ceará.
Terras ou povo
O historiador João Bosco Gaspar, em audiência pública na Câmara Municipal de Tianguá sobre o litígio, rebate o argumento. Conforme a pesquisa de João Bosco, um decreto do século XIX determina as terras como sendo cearenses. A decisão foi tomada não com base na geografia, mas no reconhecimento da população local como sendo povo do Ceará.
Conforme argumento de pesquisadores cearenses, os piauienses que residiam próximo à divisa buscavam serviços públicos no Ceará, ofertados com melhor qualidade e mais próximos de onde moravam. Com o passar do tempo, essa população passou a se considerar cearense, e um decreto estabeleceu a região como pertencente ao Ceará.
“O decreto é fruto de um acordo entre as províncias, passou nas duas casas: passou na Câmara dos Deputados e no Senado do Império, e teve um parecer das duas casas”, afirma João Bosco.
Reivindicação do território
Em 2011, o Piauí moveu uma ação no Supremo Tribunal Federal reivindicando a zona de litígio, que tem como relatora a ministra Cármen Lúcia. A ministra solicitou ao Exército uma perícia para definir a linha divisória entre os estados. O estudo foi orçado em R$ 6,9 milhões, e o valor deveria ser dividido entre os estados. O Piauí, com interesse na causa, bancou a pesquisa.
A conclusão do Exército é de que o território que deve pertencer ao Piauí é ainda maior do que o estado pediu na ação no STF. Se o Supremo atender ao pedido como solicitado pelo Piauí, cerca de 25 mil cearenses deixam de residir no Ceará. Se for aprovado conforme o estudo do Exército, o Ceará perde uma fatia ainda maior de seu território, 245 mil habitantes e a sede de sete municípios.
O deputado Franzé Silva (PT), presidente da comissão de Estudos Territoriais da Assembleia Legislativa do Piauí, defende como solução para o impasse que o Ceará “ceda” apenas áreas não habitadas.