No início da terceira década do Terceiro Milênio, a civilização se vê às voltas com uma série de questões que muitos julgavam já terem sido superadas: o descaso pelo aquecimento global, a escalada do genocídio indígena, o aumento da intolerância religiosa e a negação da própria ciência (o crescimento dos defensores da conspiratória teoria da Terra Plana está no cerne de todas as “muvucas” anteriores).
Com o tema “Pirralha faz pirraça e a BICA entra na graça”, sugerido pela biqueira Neidinha, esposa do Manuel Batera, a banda carnavalesca mais escrachada de Manaus resolveu cutucar a onça com vara curta e mostrar que o aquecimento global é uma ameaça real que precisa ser combatida, nem que seja com doses cavalares de ironia e bom humor.
A exemplo dos anos anteriores, o tema foi escolhido na segunda quinzena de dezembro do ano passado durante uma reunião da velha guarda dos biqueiros no Bar do Armando, regado a cerveja e xis-porco.
– Não deixar a Amazônia se transformar em uma nova Austrália me parece uma questão fundamental, como já denunciava o maestro Adelson Santos nos anos 80 – resumiu o artista plástico João Rodrigues, um dos biqueiros presentes na reunião.
Mas os biqueiros não estão sozinhos nessa tarefa. Basta lembrar que, recentemente, a “pirralha” Greta Thunberg foi eleita a personalidade do ano pela revista Time, por inspirar movimentos estudantis de todo o ocidente na luta contra o aquecimento global e em defesa da natureza. Aos 16 anos, ela é a mais jovem personalidade contemplada com esse título.
Também não é a primeira vez que a BICA investe na questão ecológica. No carnaval de 1992, com o tema “No Reino do Jacaré”, os biqueiros denunciaram a tentativa de se introduzir no Amazonas a caça seletiva de jacarés a partir de uma notícia nunca confirmada de que havia uma superpopulação de répteis assassinos no município de Nhamundá.
A marchinha da banda ia direto na ferida: “Assim não dá pé / Assim não dá pé / Pegar pra pato / O pobre do jacaré / Tão me culpando de tudo / Por todas as mazelas da população / Escola e Saúde falidas / Falta d’água, esculhambação / Querem tirar o meu couro / Sou o culpado pela devastação / A Lourdes disse e o Armando confirmou / Jacaré não é boto nem vilão / É ou não é?… / Coitado do jacaré!”
Os biqueiros também recuperaram uma tradição quase esquecida de homenagear como letristas os foliões da banda que atravessaram o espelho. A letra da marchinha deste ano (psicografada por Pai Simão Pessoa da Caxuxa e David Almeida), é atribuída ao cantor e compositor Afonso Toscano (um dos fundadores da banda), ao radialista Joaquim Marinho, ao poeta Almir Graça e ao pagodeiro Agnaldo do Samba, todos falecidos no ano passado.
– É uma maneira de perpetuarmos a memória dos verdadeiros baluartes da brincadeira! – explica Ana Cláudia Soeiro, atual responsável por colocar a banda na rua desde o falecimento de seu pai, o comerciante Armando Soares, em abril de 2012.
Segue abaixo a letra oficial, que será gravada pelo rei Davi Assayag, com arranjos do maestro Reina e também homenageia o cantor e compositor Adelson Santos:
Não mate a mata por favor
Tem toco cru pegando fogo pelo chão
Não mate a mata, não mate a mata não
A verde virgem bem que merece consideração
Não tem culpa eu, não tem culpa tu
Não tem culpa ninguém
Mas culpa todo mundo tem
Salve a selva hoje
Pra vida salvar também
A pirralha faz pirraça
E a BICA entra na graça
A Greta quer ver pau em pé
A BICA abunda, bate forte e bota fé
Pois pau pegando fogo
Só quem quer ver é mané!
A hora é essa pra salvar o planeta
Chega de papo, não vem com mutreta
Não entra nessa de quebrar o galho
Se não, ora pois, vá pra casa do c’aralio
Entra na BICA pra não se queimar
A BICA é grande, você vai gostar
Só dá prazer e não faz mal
Levanta sua bandeira nesse carnaval
Texto: Simão Pessoa