A PEC da Blindagem e a afronta ao Estado Democrático de Direito

A recente aprovação da chamada PEC da Blindagem pela Câmara dos Deputados reacende um debate crucial sobre os limites da prerrogativa parlamentar e a essência do Estado Democrático de Direito. Sob o argumento de resguardar a independência do Legislativo, a proposta revela-se, em verdade, como um instrumento de autoproteção que afronta princípios caros à Constituição Federal de 1988, tais como a igualdade, a moralidade administrativa e a própria separação dos poderes.

É certo que imunidades parlamentares desempenham papel relevante para a proteção da atividade legislativa contra abusos de outros poderes. Todavia, a ampliação indiscriminada desses mecanismos, convertendo-os em escudos pessoais, subverte a lógica republicana e cria um perigoso desequilíbrio institucional. Em vez de fortalecer a democracia, naturaliza-se a impunidade e fragiliza-se a confiança social nas instituições representativas.

Nesse contexto, merece destaque a postura de alguns deputados que, mesmo após terem votado a favor da proposta, vieram a público reconhecer o equívoco. A retratação, ainda que tardia, deve ser compreendida como sinal de maturidade política, sobretudo quando se contrasta com o silêncio cúmplice de muitos que preferem legitimar um texto que afronta diretamente o princípio republicano segundo o qual ninguém está acima da lei.

Outro elemento digno de registro é a intensa pressão da opinião pública. A reação popular,
manifestada por meio das redes sociais, da imprensa e de críticas de entidades da sociedade civil, cumpriu função essencial de reafirmar que o Parlamento é a casa do povo, não podendo se converter em guarida para aqueles que, travestidos de representantes democráticos, utilizam o mandato como salvo-conduto para práticas delituosas. Esse movimento encontra respaldo no art. 1º, parágrafo único, da Constituição, que consagra que todo poder emana do povo, o que implica um dever permanente de transparência e responsabilidade.

A aprovação da PEC da Blindagem representa, assim, um mau exemplo institucional. O Legislativo, enquanto espaço de elaboração normativa, não pode legislar em causa própria para restringir a atuação jurisdicional ou criar prerrogativas que desvirtuem a função pública. Ao fazê-lo, viola-se não apenas a moralidade administrativa prevista no art. 37 da Constituição, mas também o princípio da probidade e a cláusula republicana, pilares essenciais à legitimidade democrática.

Portanto, a crítica a essa iniciativa não é mero exercício retórico: trata-se de defesa da ordem constitucional. A sociedade brasileira não pode se resignar diante de tentativas de blindagem que corroem a confiança no sistema político. É pela pressão social, pelo controle difuso da opinião pública e pela vigilância cidadã que se impedirá a consolidação de um modelo de democracia formal, porém esvaziada de conteúdo ético.

A lição que se extrai é cristalina: a democracia se fortalece na medida em que seus representantes compreendem que o mandato não é privilégio, mas encargo ético e jurídico em favor do povo. Que os que se arrependeram sirvam de exemplo. Que os que persistem na defesa da impunidade saibam que o julgamento da sociedade é, em última instância, mais severo do que qualquer blindagem constitucional.

*Fábio de Souza Pereira é Jornalista, Professor e Membro da ABRADEP.